O melhor teste da minha vida foi um em que reprovei.
Hoje vou falar-vos acerca de um teste em que felizmente reprovei.
Esta é a história de como falhei no meu exame para Nidan.
Comecei a minha prática de Karate em 1994. Noutros aspectos da vida, seria já tempo suficiente para fazer de mim um perito, mas não em artes marciais.
Na adolescência dediquei-me ao Karate desportivo. Era o que necessitava para me sentir activo, ter metas e um grupo próximo de colegas (uma equipa) cuja amizade perdura. Não obstante o foco nas competições, mantive a presença em eventos de Karate dito tradicional. Frequentei seminários sempre que pude e tentei reter o máximo de informação dos Mestres.
Recordo com especial saudade os tempos em que conseguia treinar 4 dias por semana e quase todos os fins-de-semana havia um torneio, demonstração ou seminário.
Depois chegou a hora de ir para a Universidade. Seguia a actividade do meu clube mas não conseguia ir treinar regularmente, pelo que a parte desportiva ficou automaticamente posta de parte. Ir aos treinos esporadicamente e ver toda a classe a evoluir durante a época e sentir-me estagnado mexeu comigo.
Decidi fazer uma pausa e focar-me nos estudos.
Mal terminei a licenciatura retomei os treinos gradualmente. O foco também mudou. O compromisso que a competição requer não pareceu compatível com a minha nova vida de trabalhador. Era então altura de me dedicar ao Karate tradicional com o objectivo de progredir solidamente na prática e nos conhecimentos. Um desafio diferente sem um horizonte temporal estabelecido, porque é para toda a vida.
Entretanto, durante o meu afastamento, houve alterações e a Associação estava agora a seguir um novo Mestre. Nesse periodo, a AKBeja juntou-se à Seiwakai e começou a ser supervisionada tecnicamente pelo Shihan Leo Lipinski. Alguns conteúdos estavam a ser leccionados de forma diferente, havia novas abordagens e principalmente métodos de ensino e de treino bem distintos. Muito pragmatismo, tudo é feito com uma razão clara que visa melhorar o desempenho em contexto de luta.
Depois de muito esforço na fase inicial, comecei a absorver as novas técnicas e métodos de treino. Mas muito mais superficialmente do que eu julgava.
Participei em alguns seminários em que o Mestre Lipinski repetidamente veiculava a informação de que estava a ver melhorias mas que faltava ainda mudar muitas coisas respeitantes à nossa forma de abordar o combate. Explicou várias vezes, de diversas maneiras e eu apanhava quase sempre um pouquinho mas percebi que faltava muito mais. Pensei que vinha com a prática. Quando já se tem a informação retida, a prática encarrega-se do resto. Contudo, neste caso a informação estava longe de estar toda carregada no meu cérebro pela simples razão de que eu não estava ainda apto para a receber.
O Mestre Lipinski reforçou a ideia, já transmitida em ocasiões anteriores, de que a forma mais indicada para progredirmos seria irmos a um seminário onde a maior parte dos praticantes fosse já versada nas competências que ele nos tentava transmitir.
E assim fiz.
Em 2011, fui com o Shihan Teófilo Fonseca ao Seminário que decorre em Londres, geralmente em Outubro. Estava ciente de que havia melhorias a fazer e provavelmente não estaria preparado para enfrentar uma prova de graduação mas, como ser testado também faz parte do treino, decidi inscrever-me. Há muito tempo que não era sujeito a provas com juri e ser avaliado por pessoas que não me conhecem e com as quais não há proximidade aumenta a ansiedade e o nervosismo. É claro que o objectivo era passar no exame mas independentemente do desfecho, estava ali uma oportunidade única de treino psicológico.
Ou era aprovado e aprendia alguma coisa pela experiência ou reprovava e aprendia muitas mais durante o processo. Com esta mentalidade, a participação no exame seria sempre proveitosa.
Resultado: Reprovei à grande.
O seminário estava repleto de pessoas que estavam a treinar como era suposto. Eu estava a adaptar-me às novas ideias mas depressa percebi que ainda não estava mentalizado para aquele tipo de abordagem principalmente no combate. As técnicas isoladas estavam aceitáveis, mas a estratégia e a tecnologia de combate estava a anos-luz dos praticantes mais experientes. Foi simultaneamente fascinante e demasiado duro para mim.
Parecia que estava num universo paralelo. Ali estava eu, que tinha treinado tanto (mas pelos vistos não muito bem) com enormes dificuldades em pôr em prática o que julgava ser de aplicação directa. Eu podia treinar o resto da vida como estava a treinar e nunca conseguiria derrotar nunhum deles. Eu penso que não dei luta a nenhum dos colegas que defrontei durante o fim-de-semana. Toda a gente foi simpática e respeitadora. Ninguém tentou magoar ninguém mas a intensidade era muito alta, o volume também e quando chegou a hora do exame eu estava bastante debilitado.
Em termos de experiência e aprendizagem, o balanço não podia ter sido mais positivo. Já tinha feito vários exames de graduação ao longo dos anos mas não me lembro de ter aprendido tanto como neste. Desta vez foi diferente.
Logo no final da primeira manhã de treino comecei a perceber o que o Mestre tinha tentado transmitir em momentos anteriores. Se não tivesse visto (e sentido!) não teria percebido. O resto do seminário foi um teste de resistência física e mental para ver até onde conseguia ir.
Podia ter passado no exame mas depois de tudo o que testemunhei durante o Seminário, ficou claro que tinha de aprimorar as minhas competências de luta.
Ao mesmo tempo, percebi que pequenos ajustes, ligeiros detalhes são extremamente significativos para o resultado final. Com pequenas alterações conseguiria melhorar muito. A relação não é sempre linear e eu passei o seminário a absorver informação que me poderia levar a melhorar exponencialmente alguns aspectos.
Senti que estava finalmente a começar a entender o Karate.
Como poderia eu estar triste por reprovar no exame quando voltei a sentir-me um cinto branco novamente? Todo o fascínio e entusiasmo de finalmente compreender algo que alguém sábio tentou pacientemente transmitir. E todas as ramificações que daí advêm! Foi como se o caminho se tivesse iluminado à minha frente e eu o pudesse agora percorrer com maior consciência.
Foi um momento importante para mim a partir do qual comecei a dar mais atenção a treinar de forma inteligente e não apenas treinar muito e treinar duro. Ficou claro para mim que deveria procurar a eficácia em detrimento da eficiência.
O teste psicológico foi duro então, mas estou certo que me ajudou bastante a ter sucesso nos exames que fiz mais tarde.
Reprovar no exame é bom?
Não. Ninguém lá vai para reprovar.
Mas falhar devido a falta de treino é que seria de facto mau. Seria sinónimo de preguiça e amadorismo. Se a falta de competência se devesse a falta de treino eu ter-me-ía sentido realmente mal. Não foi o caso. Faltavam-me conhecimentos para poder treinar melhor e foi isso mesmo que trouxe de lá.
Foi também uma lufada de ar fresco saber que ainda há organizações onde as pessoas com bons desempenhos passam e pessoas com maus desempenhos reprovam. Em muitas organizações, no Karate, nas Artes Marciais e na Vida, a triagem parece fazer parte do passado e hoje todos têm de ser iguais e ter os mesmos resultados, independentemente das suas competências e comportamentos.
Às vezes penso quando chegará o próximo momento de iluminação. Pode ser num treino já esta semana, pode ser num seminário daqui a 30 anos. Cá estarei para o apreciar.
Rui Machado